O melhor Mundial de sempre
Pedro Azevedo
Para muitas pessoas da minha geração o melhor Mundial de futebol de sempre foi o de 1982. Várias razões concorrem para esse sentimento, mas talvez as maiores se prendam com a constelação de craques e a qualidade superlativa das selecções que nele estiveram presentes. Tudo isso contribuiu para grandes espectáculos de futebol oferecidos por equipas com extraordinária vocação atacante, os quais chegaram pela primeira vez a cores a muitos lares portugueses. Houve também um conjunto de situações insólitas que apimentaram esse Mundial e que motivaram grande discussão à sua volta, num ou noutro caso inspirando mesmo alterações nas regras do jogo e da disputa da competição.
Muitas das selecções nacionais presentes no Mundial de 82 juntaram o melhor lote de jogadores da história dos seus países. Comecemos pela detentora do título, a Argentina: para além de ter mantido o núcleo central formado por Fillol, Passarella, Tarantini, Ardilles, Bertoni e Kempes, instrumentral no sucesso caseiro 4 anos antes, os argentinos contavam agora com uma estrela em ascensão, Diego Armando Maradona, recém protagonista de uma transferência milionária do Boca Juniors para o Barcelona. Ainda assim não eram o favorito número 1. Esse papel estava reservado pelos "bookies" de apostas desportivas para o Brasil. A "Canarinha" havia conseguido reunir um conjunto de craques impressionante que rivalizava com o time que havia se sagrado campeão em 70, onde se destava o quarteto do meio campo formado por Zico, Sócrates, Falcão e Cerezo, sem desprezo pela polivalência dos exuberantes laterais Júnior e Leandro ou habilidade e poder de fogo de Éder, o "Patada Atómica", revelando um futebol sambado de inegável beleza plástica. A Itália, apesar de desvalorizada pela crítica do seu país, tinha também um plantel fantástico. Quarta classificada em 78, a "Squadra Azzurra" constituiu uma defesa de betão composta por Gentile, Scirea, Collovati e Cabrini que era uma garantia de solidez para o seu experiente guarda-redes Dino Zoff. Para além disso, os italianos tinham em Antognoni e Tardelli, respectivamente, o cérebro e motor do meio campo, em Bruno Conti, a fantasia e magia do drible, e em Paolo Rossi, resgatado mesmo em cima do Mundial após o escândalo do Totonero que o afastou por 2 anos dos relvados, a codícia do golo. Outra selecção que não se podia de todo descartar era a da Alemanha Federal, campeã mundial em 74 e europeia em 80. Apesar de desfalcados de Bernd Schuster, os alemães contavam com o explosivo guarda-redes Schumacher, laterais de grande pendor ofensivo como Kaltz ou o "panzer" Briegel, um líbero (Stielike) de enormes recursos técnicos, uma linha média onde para além do resistente campeão de 74, Paul Breitner, pontificavam Felix Magath e o jovem Lothar Matthaus e uma linha avançada onde o jogo de cabeça do vigoroso Hrubesch, o herói de 80, era complementado pela inteligência e capacidade de ligar o jogo de Karl-Heinz Rummenigge e a habilidade de pendor latino de Pierre Littbarski.
Numa segunda linha emergia a França. Os gauleses tinham provavelmente a sua melhor selecção de sempre, com uma linha média de sonho formada pelo astro Platini, recém contratado pela Juventus ao Saint-Étienne, o pequeno Giresse, dínamo de toda a equipa, o veloz Tigana e o equilibrador Genghini, todos eles dotados de grande técnica individual. Além destes, os franceses possuiam dois laterais com grande capacidade ofensiva como Amoros e Bossis, o central Battiston e avançados rápidos e perigosos (Didier Six e Dominique Rocheteau). Outra selecção a não descartar era a da Polónia. Terminado o reino de Deyna, havia emergido um novo grande jogador (Boniek), médio de apurada leitura de jogo e capacidade goleadora, o qual estava acompanhado por uma grande geração de jogadores polacos como o guarda-redes Mlynarczyk, o capitão Zmuda, o talentoso jovem Smolarek e dois experientes avançados e com grande faro de golo, Lato e Szarmach, os dois melhores goleadores do Mundial de 74, competição onde os polacos haviam obtido o melhor lugar da sua história (3º). E o que dizer da Inglaterra? A "Selecção dos 3 leões" contava com jogadores como Neal, McDermott ou Thompson (Liverpool), Viv Anderson ou Trevor Francis (Nottingham Forest) e Peter Withe (Aston Villa), todos vencedores recentes da Champions, o que já por si seria um sinal de força. Mas a cereja em cima do bolo era um meio campo de grande qualidade técnica composto por Bryan Robson, Glenn Hoddle e Ray Wilkins, os três melhores jogadores ingleses dessa década (Kevin Keegan estava a terminar).
Não se pense, contudo, que a qualidade acabava aqui. A Bélgica protagonizou logo a primeira surpresa do torneio, ao vencer na estreia a campeã Argentina. Os belgas tinham um misto de jogadores do Anderlecht e Standard de Liége, que constituíam o núcleo duro da selecção. Vice-campeões europeus em 80, eram uma equipa que privilegiava acções de contra-ataque e que tinha na velocidade e robustez dos seus jogadores as suas principais qualidades. Elementos como o lateral (capitão) Gerets ou o avançado Ceulemans destacavam-se dos restantes pela disponibilidade física praticamente inesgotável. A qualidade técnica de Vercauteren (futuro treinador do Sporting) e Van Moer adicionava um perfume ao seu futebol, enquanto Coeck garantia a coesão do sector intermédio. O avançado Vandenbergh concretizava com frieza e Jean-Marie Pfaff, pese embora o estilo algo circense, conjugava elasticidade com um carisma muito acima da média. Por tudo isto, os belgas não podiam à partida ser desprezados, eles que se encontravam na melhor década da sua história (como 86 veio a comprovar). A Áustria era outra selecção a considerar, contando com o temível goleador Krankl (Barcelona), os influentes médios Schachner (habilidade) e Prohaska (cérebro e qualidade de passe), ambos disputados pelo Calcio italiano, o defesa Bruno Pezzey ou o guarda-redes Koncilia. Finalmente, havia a União Soviética, uma equipa que tinha a sua raíz no esplendoroso Dinamo de Kiev de Lobanovskiy e se apresentava no torneio com outra raposa velha (Konstantin Beskov) ao leme. Os soviéticos tinham dois jogadores do mais alto nível, o guarda-redes Rinat Dasayev e o avançado Oleg Blokhine, apoiados por uma equipa com processos muito mecanizados garantidos pela coluna vertebral de jogadores provenientes do gigante ucraniano. Logo à partida deram uma enorme dor de cabeça ao Escrete Canarinho, que só não evoluiu para um "traumatismo ucraniano" devido à invulgar capacidade técnica dos jogadores brasileiros. A Escócia era outra selecção com que se contar, dispondo de um meio campo de luxo formado por John Wark (melhor jogador daquele Ipswich Town, vencedor da Taça UEFA em 81, que fez furor na Europa pelas mãos de Sir Bobby Robson), Gordon Strachan (a abelhinha, vencedor da Taça das Taças e da Supertaça europeia pelo Aberdeen de Sir Alex Ferguson) e Graeme Souness (estrela do Liverpool multi-campeão europeu), o líder defesa Alan Hansen (Liverpool, futuro comentador de sucesso na BBC) e uma linha avançada composta pelo ponta Robertson (bicampeão europeu pelo Nottingham Forest, do qual era um dos jogadores mais influentes pela habilidade de cruzamento e capacidade de jogar com os dois pés) e a estrela da companhia Kenny Dalglish, mítico jogador intemporal do Liverpool. O treinador era o carismático Jock Stein, campeão europeu pelo Celtic em Lisboa (1967).
Enfim, só esta galeria de equipas e de craques já provaria um ponto, mas outros grandes jogadores marcaram presença e abrilhantaram o evento, embora as suas selecções não lhes tivessem dado a possibilidade de brilhar mais. São caso disso os camaronenses N'Kono (guarda-redes) e Roger Milla (avançado), o peruano Cubillas (terceiro mundial), o nosso bem conhecido argelino Rabah Madjer (injustamente afastado do mundial, mas já lá vamos...), o chileno Caszely, os húngaros Meszaros (contratado pelo Sporting) e Nyilasi (também pretendido posteriormente pelos leões), os checos Nehoda e Panenka (esse mesmo, o do penálti com assinatura), campeões europeus em 76, ou os norte-irlandeses Armstrong, McIlroy, Whiteside e Pat Jennings e os jugoslavos Gudelj e Susic (craque do PSG).
O Mundial também ficou marcado por algumas polémicas. A maior delas terá sido o vergonhoso Alemanha-Áustria que terminou com um conveniente resultado (1-0 para os alemães) que interessava às duas equipas e eliminava a Argélia de Belloumi e Madjer que havia protagonizado a grande surpresa do torneio ao bater anteriormente os alemães. O facto de o jogo decisivo ter decorrido 1 dia após o Argélia-Chile fez com que a FIFA alterasse as regras da competição, passando a última jornada da fase de grupos a ser jogada em simultâneo. Outra situação insólita ocorreu quando um sheick do Kuwait, insatisfeito com uma arbitragem, mandou a sua equipa abandonar o campo, algo que gerou uma imensa confusão e incredulidade, arrancou risos das bancadas e no campo (jogadores franceses) e fez o jogo estar parado durante imenso tempo. Com menos sorrisos saíriam os gauleses da meia-final de Sevilha, não só pela derrota nos penáltis mas também pela indigna agressão protagonizada por Schumacher a Battiston, que levou o defesa francês a abandonar o relvado de maca e com o maxilar fracturado. Para lá de nunca se ter retratado deste episódio, o guarda-redes alemão conseguiu não ser expulso neste incidente. Outro facto inusitado foi a goleada imposta pela Hungria a El Salvador (10-1) logo na primeira jornada da fase de grupos. De destacar também o penálti desperdiçado por Antonio Cabrini na final contra a Alemanha, quando o resultado ainda estava num zero-a-zero, algo que poderia ter custado bem caro aos italianos.
Não creio que alguma vez tenha havido semelhante constelação de estrelas num Mundial, pese embora a lamentada ausência da Holanda, vice-campeã em 74 e 78. Maradona, Zico e Platini disputavam o ceptro de melhor jogador do mundo, Blokhine (1975) e Rummenigge (1980 e 1981) já haviam ganho a Bola de Ouro do France Football, Sócrates, Falcão, ou Boniek estavam numa linha de sucessão. Havia muito mais jogadores do que há hoje capazes de fazer a diferença. Maradona terá sido a maior desilusão da competição a nível individual. Para tal muito terá contribuído não ter tido o peso no balneário que lhe veio a ser reconhecido em 86 ou 90. Aquela Argentina, campeã mundial 4 anos antes, era muito a selecção de Passarella, Kempes e Fillol, não de Maradona. Ainda assim o astro argentino marcou 2 golos no Espanha-82, mas viria a ser impotente perante duas das melhores equipas de sempre na história dos mundiais, a Itália e o Brasil. Os italianos afastaram-no do jogo através de uma marcação impiedosa de Gentile, algo que viria a estar na origem de uma progressiva sensibilização no sentido de as regras protegerem mais os jogadores que fazem a diferença. Mas a Itália não era só rigor defensivo e acabou por vencer esse Mundial após Paolo Rossi ter renascido como a fénix no fatídico (para os brasileiros) jogo do Sarriá. Rossi fez um hat-trick decisivo para a vitória da "Squadra Azzurra" sobre os brasileiros, bisou na meia-final contra a Polónia e marcou o primeiro golo na final contra a Alemanha Federal, acabando por se sagrar o melhor marcador da competição. Outro jogador de grande influência foi o extremo Bruno Conti, jogador da Roma, providencial com o seu manancial de fintas e cruzamentos perfeitos. A Itália sagrar-se-ia campeã, com Alemanha em segundo, uma surprendente Polónia a repetir o terceiro lugar de 74 e a desmoralizada França (com os jogadores exaustos e ainda não recuperada psicologicamente de uma meia-final ingloriamente perdida face aos alemães após ter estado em vantagem por 3-1) a fechar o quarteto mais bem classificado.
Um Mundial inolvidável!
"Naranjito", a mascote do Mundial de 82