Tudo ao molho e fé em Gyokeres
Geny ao volante do Chapa do título
Pedro Azevedo
O William Blake, que foi um poeta e filósofo importante do Século XVIII, escreveu um dia que há o conhecido, o desconhecido e no meio estão as portas da percepção. Com esta afirmação, o escocês pretendeu estabelecer uma fronteira entre a realidade e a sua percepção. Sendo certo que muito do que é conhecido é real, nem tudo o que é desconhecido só por isso deixa de ser real. Pelo que por vezes aquilo que algumas pessoas dão como real é apenas uma percepção que têm da realidade, não tendo necessáriamente de ser a realidade. Aliás, com a perda de independência de alguns media, os opinion makers enviezados e o spin da comunicação assente em agências, talvez nunca como hoje a realidade tenha estado tão longe da percepção que as pessoas fazem dela.
Vem o arrazoado acima a propósito do Sporting-Benfica da noite passada. Na antecâmara do jogo, os analistas discutiam quem poderiam ser as figuras do derby. Do lado do Sporting falava-se de Pote, Gyokeres, Morita e Hjulmand, do Benfica emergiam Di Maria, Rafa, Aursnes e João Neves. Uma infinitésima parte eventualmente terá mencionado Daniel Bragança, ninguém (a não ser talvez em Moçambique) referiu Geny Catamo. No entanto, os dois foram decisivos para a vitória do Sporting. E no caso do Geny, mesmo em Moçambique, quem apostaria 1 cêntimo na probabilidade de este resolver o jogo com um remate de pé direito? Ninguém, porque a percepção das pessoas era de que ele só teria pé esquerdo e o direito só serviria para subir num Chapa. A realidade porém é que o Geny marcou com os dois pés. E deu o triunfo aos leões. Sendo que o golo do Benfica foi obtido por Bah, que até aí só tinha marcado um em toda a época, outro jogador improvável. Com o Bragança há mesmo uma dissonância entre a percepção e a realidade que vai muito além do mero cálculo probabilístico: o Dani é visto como um jogador macio, o que é uma reminiscência de um passado que não dá espaço para contemplar a natural evolução de qualquer ser humano. (Quando um actor como Ronald Reagan foi eleito como presidente dos EUA, as pessoas dividiram-se entre as que percepcionaram que a sua carreira anterior o havia ajudado nesse faz de conta essencial à política e os que acharam ainda mais extraordinário um actor canastrão se ter feito eleger para o cargo mais importante do mundo.)
A percepção dominante sobre Roger Schmidt também não deixa de ser surpreendente. Na época passada, durante muito tempo, o Benfica passou por cima dos seus adversários. Liderou a Liga desde o início até ao fim e chegou aos quartos da Champions. Além disso, a equipa sempre jogou um futebol vistoso. Mas o fim de temporada foi menos exuberante que o seu início e essa foi a imagem que permaneceu na cabeça das pessoas. Pelo que o treinador entrou pressionado nesta época e assim continua, entre acusações de mexer pouco na equipa e uma outra curiosamente conflitante com a primeira: a de que troca muito de ponta de lança. A verdade é que se mexeu pouco na equipa tal deveu-se a ter colocado quase sempre os melhores em campo. E se trocou muito de ponta de lança, está à vista de todos que nenhum dos pontas de lança dos encarnados é suficientemente bom. Sabendo-se que o treinador benfiquista não é totalmente responsável pelas aquisições, se calhar a percepção que os adeptos têm sobre o treinador deveria transferir-se para o presidente, mas na realidade é Schmidt quem paga as favas (que são verdes).
Cono é fácil criar uma percepção, logo os jornalistas acenaram com o facto - o drama, a tragédia, o horror - de o Gyokeres não marcar há 3 jogos. Ainda que a realidade nos mostre que este continua vivíssimo da silva, explorando o espaço e simultaneamente ligando o jogo como pivô como antes nenhum ponta de lança do Sporting, e que só por manifesto azar e sortilégio dos ferros não bisou no conjunto dos derbies. Pelo que temo que a realidade se venha rapidamente a impôr à força a esses jornalistas e o sueco continue a ser instrumental na nossa gesta com destino ao título. Busca que hoje foi conduzida por Geny, o geny(o) da Lâmpada (para contrapor ao génio do Pote) ao volante de um Chapa moçambicano, autocarro onde todos andam de mãos dadas para não saltarem fora. Como é o caso dos jogadores do Sporting no que diz respeito ao título.
Tenor "Tudo ao molho...": Geny Catamo ("O Nambauane"), secundado por Daniel Bragança e o grande capitão Coates. No plano negativo, Morita apresentou-se fora da forma, sem arranque e aquele controlo das situações que o caracteriza, e Inácio esteve bastante mal, mostrando imensas dificuldades em parar um jogador alto, louro e percepcionando como tosco (Tengstedt) que ontem lhe deu água pela barba ao se posicionar sobre o lado esquerdo da defesa do Sporting. Matheus Reis uma vez mais foi induzido a marcar o adversário errado e deixou novamente Bah sozinho.
P.S. Os meus parabéns aos nossos Leitores Sol Carvalho e José Pimentel Teixeira (emérito bloguista e autor do recente "Torna-Viagem", livro que não devem deixar de comprar, à semelhança de "Quatro Desafios de Escrita!", do igualmente emérito bloguista e nosso Leitor José de Xã), que neste momento certamente sentir-se-ão duplamente satisfeitos pela vitória do Sporting e contribuição decisiva de um jovem moçambicano. Haverá festa rija em Moçambique e esse é um efeito que só o futebol proporciona e deveria ser aproveitado por clube e país.
P.S.2. A percepção da realidade que o Artur Soares Dias teve do soco do Di Maria no Pote foi menos violenta do que a percepção com que ficou de os Super Dragões alegadamente lhe poderem vandalizar a pastelaria depois de uma certa visita à Maia. Porém, na realidade, aparentemente só a primeira se verificou, o que demonstra que a percepção muitas vezes não corresponde à realidade (ainda que haja VARs que nem perante a realidade cumpram o protocolo, perguntando-se então qual a sua utilidade e se essa passa pela criação de uma realidade alternativa).